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Os Heterónimos da Peçonha

Os Heterónimos da Peçonha

08
Out24

«Quartet in Autumn» de Barbara Pym

rltinha

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A vida não tratou bem a Barbara Pym e só por um rasgo de sorte, após tremendo azar (editores interessados em vender recusaram publicar-lhe livros durante vários anos e só um inesperado artigo de jornal mudou as vontades), é que a senhora Pym chegou a ver publicado este «Quartet in Autumn».

Claro que a impossibilidade de publicar não a impediu de escrever. E isso nota-se na escrita, que contém o travo da rica ironia, mas está aqui orientada para dar conta de quatro solidões (sexagenárias ou lá próximas) que partilham um local de trabalho.

Doença física e mental, pobreza e isolamento, aburguesamento dos meios urbanos com expulsão ou sujeição a condições precárias dos que menos têm, sem dramas nem espectáculos, numa escrita enxuta e directa que não cai em simplismos ou explicações insultuosas para a inteligência do leitor. 

É nestas três vertentes que Pym se diferencia das muito badaladas «literaturas no feminino» que por aí têm tanto sucesso: não presume a burrice dos leitores, nada é sobre a autora ser mesmo super virtuosa e/ou ter feito imensa pesquisa para encher chouriços de páginas supérfluas, serve-se daquilo a que James Salter chamava «raw material of life» sem quase sair da sua paróquia, e isso nunca a diminui.

30
Jul24

«A Zona de Desconforto» de Jonathan Franzen

rltinha

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Para pessoa que se ri das próprias piadas, na vã esperança de arrancar gargalhadas no momento em que acha que teve piada (e não quando tem piada involuntariamente), Jonathan Franzen arriscou bastante com estes ensaios.
Se é verdade que ego é coisa que não lhe falta, faria algum sentido que a sua compulsão para ser admirado o levasse a não publicar certas coisas. Sobretudo trechos em que transparecem certos defeitos de carácter que permaneceram geneticamente similares ao longo das décadas, ainda que sofrendo as mutações emergentes da formação de uma identidade. (E não é assim com a generalidade dos seres humanos?)
Para quem lhe conheça a obra ficcional, estes ensaios terão um interesse particular. Revelam que o autor é dotado de uma notável habilidade para remisturar e rapinar que, com o passar do tempo, se tornou mais preguiçosa e imediata nas fontes, mas da qual vem extraindo uma obra cuidadosamente burilada.
Também é giro ver como o tiro no pé «Purity» emergiu de experiências mais superficialmente avaliadas pelo Franzen e o retorno aos bons romances que foi «Crossroads» se deve à revisitação de um período seminal na vida do autor.
Porém, na qualidade de pessoa que prefere não saber como se fazem os efeitos especiais no cinema, preferia atribuir os bons trechos narrativos ficcionais a pesquisa saturada e génio criativo do que à capacidade para apropriar e remisturar.

28
Jul24

«Blue Sisters» de Coco Mellors

rltinha

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Xaropada. E drama. Enredo de seriado para gajas com vontade de sentir que são super únicas nos seus sentimentos enlatados para entreter as massas.

E estas escritas de virtuosismo copywriter/workshop de escrita criativa? Não há editores que lhes digam quão confrangedoras são as suas frases?

O mais triste é que estas coisas vendem que nem pãezinhos quentes. Eu própria, que tenho a mania que sei o que é bom, caí na tentação de espreitar isto. Bem feita.

 

26
Jul24

«Contra a Amazon» de Jorge Carrión

rltinha

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Um autor que diz ser contra a Amazon, mas defende o modelo de livraria em que se cobra uma entrada aos clientes e que estima distâncias urbanas em minutos de Uber. O que o aflige, contrariamente ao que o título escolhido para esta colectânea de textos possa sugerir, não são os malefícios do capitalismo. Afinal, é graças ao capitalismo e às suas iniquidades e práticas encantadoras que o autor pode circular pelo mundo, em viagens ultra poluentes e extremamente baratas graças às abébias dadas pelos governos às transportadoras aéreas, para cumprir esse desígnio honroso e nada narcísico que é visitar lojas (livrarias) e relatar essas visitas.
O problema contra a Amazon é que lhe dá cabo das lojas que gosta de visitar, porque pratica preços impossíveis para essas livrarias. Claro que não oferece uma só reflexão sobre o facto de, para os mais pobres (aqueles que não são bem vindos nas livrarias, pelo menos segundo a minha experiência pessoal) os «preços da Amazon» até representarem uma possibilidade mais alargada de acesso ao livro.
Se as viagens e leituras em barda fossem realmente o meio de crescimento interior e alargamento de vistas de que tanto se fala, certamente que o autor poderia ter oferecido algumas reflexões sobre os muitos milhões em impostos não cobrados que permitem que as viagens de avião possam ser baratas, mas não haja qualquer empenho dos governos em co-financiarem os livros, pelo menos os havidos como canónicos, ou dispensarem cobranças/garantirem apoios destinados a diminuir o preço dos livros. Seria certamente mais pertinente do que massagens de ego sobre como é um leitor extraordinário ou relatos de encantamentos matarruanos que se julgam muito cosmopolitas.

22
Jul24

«The Twenty-Seventh City» de Jonathan Franzen

rltinha

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Querem sentir-se leitores super espertos? Leiam toda a obra da fase madura de um escritor e depois vão ler os primeiros romances dele.
(De um escritor com capacidade evolutiva e hábitos de trabalho que envolvam aprimorar os livros.)
Para romance de estreia, «The Twenty-Seventh City» não é nada mau. Mas Franzen só fica como peixe na água quando escreve sobre dinâmicas familiares e as incursões que faz por outras temáticas raramente lhe saem melhor do que tiros nos pés. Esse é ainda o defeito deste livro: tem muitos trechos que foram criados para cativar atenção sobre o autor e menos sobre a obra, porque redundam em exibicionismos artificiais. O ego do senhor Franzen não diminuiu com a idade. Mas aprendeu a definir as prioridades com precisão.
E é um regalo ver como o esforço solitário de um escritor lhe adestrou a escrita.

18
Jul24

«As Partículas elementares» de Michel Houllebecq

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O Michel Houllebecq adora homens e odeia mulheres. E escreve animado da ânsia de agradar aos homens, garantindo-lhes que são especiais, superiores às mulheres, legítimos donos do mundo (porque, coitados, ainda não lhes chegavam quase todos os modos de socialização a que foram sujeitos para lhes revelar estas coisas...).
Para tanto, o Michel narra imensos trechos de índole sexual que redundam em pornografia gratuita (os escritores tendem a escrever sobre aquilo que conhecem melhor), cria personagens femininas que, ora são detestáveis (para justificar a misoginia, percebem?), ora proferem elas próprias um discurso misógino primário que o autor, com a elegância de um rinoceronte sobre um canteiro de amores-perfeitos, julga assim dotar-se da qualidade de sentença (porque são as próprias mulheres a declarar coisas misóginas, logo, as bacoradas que dizem são factos e não misoginia). Sim, o «jénio» (como diz O Mitra) revela este nível de sofisticação…
Mas, se ele é isto, então como é que se justifica a aclamação literária do autor?
1.º Nunca se deve subestimar a voluntariedade de certos grupos em sacralizarem quem lhes legitima os sentimentos mais torpes e rasteiros (cf. vaga facha que assola o mundo); 2.º É homem e goza desse privilégio; 3.º Disfarça as boçalidades porno-chauvinistas com enxertos de vasta pesquisa (os «dialomonólogos» com que as suas personagens debitam boçalidades entremeadas de pesquisas são todo um tratado de como aos homens o mundo editorial tudo aceita como bom; nem Fidel Castro seria tão verborreico entre lençóis).
Mas, por muita pirueta e legitimação que lhe seja dada, Michel Houellebecq, no seu âmago, não passa de um Andrew Tate que sabe usar um cartão da biblioteca.

16
Jan24

Das leituras no passado recente («On Palestine» de Noam Chomsky & Ilan Pappé)

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Um livro breve, mas esclarecedor, sobre a não complexidade da famosa «questão complexa» do momento. Como qualquer abordagem dotada do mínimo de rigor e seriedade, é de reclamar goteira para ler as passagens sobre os reiterados ataques de Israel ao povo palestiniano, as jogadas sujas da política internacional dos EUA, a conivência europeia numa épica hipocrisia que a todos deve envergonhar.

Num tempo em que a comunicação social do mundo livre faz da propaganda russa uma fofinha, (com a agravante de, pelo menos a segunda, estar severamente apertada pela garra do Kremlin, mas a primeira escolher obediência à voz do dono ou, ainda mais ridículo e abjecto, imitar os heróis da manufactura de consentimento do outro lado do Atlântico, como fazem os cosmopolitas matarruanos da imprensa tuga), é preciosa a leitura de gente pensante, capaz de análise crítica, comprometida com valores absolutos como a justiça e não com cegueiras ideológicas ou, ainda pior, chalupice religiosa.

Recomenda-se muito esta leitura.

01
Ago23

Das leituras no passado recente («A Informação» de Martin Amis)

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Tendo por tema a inveja/competitividade entre dois «amigos» escritores e como factóide literário a zanga entre o Martin Amis e o Julian Barnes, foi direitinho para a lista de desejos. Infelizmente a Quetzal não o levou para as últimas feiras do livro, vendo-me eu obrigada a adquiri-lo com uns míseros 30% de desconto. Ironicamente a Wook vendeu-o com os desejáveis 50% de desconto na semana em que o comecei a ler.
Tudo isto, à semelhança do livro do Amis, é um conto moral. O cosmos conspirou com sinais demonstrativos (ex poste) da má ideia que foi adquirir esta tradução pejada de calinadas, feita por um tradutor que desconhece o significado do verbo presumir, assim o demonstrando em pelo menos 16 (dezasseis) ocasiões distintas, nas quais traduz MAL o verbo «to assume» para o verbo «assumir». Também renomeia a reincidência penal como recidiva, e chega mesmo a traduzir «paper cup» para «caneca de papel» (certamente porque o recipiente descartável teria uma asinha de papel). Nem sob a boa fé de na realidade o tradutor estar a criar no leitor a revolta e o desapontamento sentidos por Richard Tull num trabalho de transposição linguística meta-artístico isto parece menos mau.
Quanto ao livro: é lamentável que o haja lido já na fase em que coisas adolescentes como o realismo mágico, os «nothingburgers» bué simbólicos ou a sociopatia armada aos cágados me digam já tão pouco. Sendo o livro opulento neste último tipo de afectações «teen» muito famosas entre homens com síndrome «sou o maior da minha rua, mas, tipo, por ser bué inteligente», tê-lo-ia adorado há um par de décadas. Por isso limitei-me a rir bastante e a satisfazer a curiosidade literária sobre o livro gerador de um «desamigamento» literário de larga fama, certa de que uma tradução alienante pela frequência dos seus erros dificilmente terá feito justiça à qualidade da escrita de Amis.

17
Jul23

Das leituras no passado recente («Confiança» de Hernán Díaz)

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Começando por um livro dentro do livro, Diáz adianta o tema, o tempo e o lugar (dinheiro/finança, EUA, dos loucos anos 20 ao pós-Grande Depressão). Segue-se-lhe uma estranha autobiografia inacabada, uma memória «bildungsroman» pela improvável ex-secretária do autor da autobiografia, culminando no diário da mulher do autobiografado.

Com estas quatro partes distintas Díaz confirma o que diz de si próprio - que há muito se esforça, trabalha e escreve (e que lufada de ar fresco é ler entrevistas em que o autor se apresenta como ser humano dedicado ao processo e não um iluminado das musas da escrita que recebe em si um dom divino) - e tem prestações de qualidade em todos estes estilos e vozes narrativas.


Depois há o fio que a tudo isto urde, dando às personagens densidade e relevância consoante cada perspectiva e contributo «factual» transportado para o conhecimento do leitor, num omnipresente ensaio subliminar sobre a ficção «dinheiro», indissociável dos seus cultores maiores que são os homens da finança, com um antecipável, mas nem por isso menos rico twist final. E é por estas duas últimas partes que este romance se revela à altura dos elogios, pela capacidade para rever a história pela perspectiva dos vencidos usando as fórmulas, os cenários, e a própria literatura dos vencedores.

13
Jul23

Das leituras no passado recente («Fundação» de Isaac Asimov)

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Um clássico incontornável da ficção científica, amplo em enredo e personagens cativantes (ainda que as mais fascinantes sejam um decalque variado de um modelo-base), que relata uma história de império galáctico em declínio e os deliciosos meandros sócio-político-económicos de um atalho de recuperação civilizacional traçado pela ficcionada disciplina da psico-história.

Exactamente o que parece: um portento imaginativo competentemente narrado, capaz de criar no leitor uma vastidão de mundos. Só não chega tão longe que permita ver mulheres como seres humanos completos e muito menos em lugares de poder ou protagonismo. Que este futuro é o de há 80 anos, mas agora parece que já é tudo leite e mel e até o termo vagina deve ser evitado, não vá alguém destituído de uma ofender-se na sua sensibilidade com a nomeação de um órgão que garantiu às suas portadora um apagamento tão absoluto que até operava nas capacidades imaginativas mais fulgurantes.

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