Das realidades da precariedade
Foram oito episódios de podcast, mais de oito horas a ouvir um longo trabalho jornalístico do Fumaça:
SEGURANÇA PRIVADA – EXÉRCITO DE PRECÁRIOS
“Exército de Precários” é o resultado de uma investigação de dois anos no interior da segurança privada em Portugal. Nesta série de oito episódios revelamos um setor de precariedade extrema e violência sistémica, largamente financiado pelo Estado.
Os males do neoliberalismo são plúrimos, muitas vezes subtis, mas nem por isso menos destrutivos. E este conjunto de episódios põe a nu muitos desses males e, acima de tudo, a normalização pela via da banalização de linguagem eufemística, destinada a destituir o factor trabalho do seu valor, e a normalizar a prática do lucro assente na violação dos direitos dos trabalhadores como corolário da evidência prática do admirável mundo novo dos cortes nas folhas de cálculo, isentos de preocupações humanas.
A dada altura são revelados os números dos «ganhos» do Estado com a contratação a privados da prestação de «serviços» (trabalho prestado por pessoas com vínculo de trabalho subordinado por conta de privados e não do Estado, mas suprindo necessidades permanentes do Estado). Na folha de cálculo os valores são vastos.
O que não é mencionado depois é a profunda miséria humana em que assentam esses «ganhos».
Lucra o Estado com:
- a precarização dos vínculos laborais dos trabalhadores;
- a violação de direitos laborais dos trabalhadores tornada possível pela precariedade, que os coloca em posições negociais ainda mais frágeis, quer pela fragilidade do vínculo, quer pela baixa remuneração;
- o sofrimento das famílias desses trabalhadores, pois que as condições de trabalho afectam profundamente a saúde física e mental dos trabalhadores, e a baixa remuneração afecta praticamente todos os aspectos da vida dos respectivos agregados familiares;
- a competição entre privados pelo primeiro lugar nos concursos públicos (erigida nos baixos preços, os quais são possíveis em razão dos pontos anteriores).
Ou seja, o Estado, primeiro responsável pelo bem estar dos seus cidadãos, lucra com a degradação dos trabalhadores que suprem as necessidades permanentes do Estado. «Lucra» com o mal que é feito, com o seu pleno conhecimento (cf. estes 8 episódios, que são públicos e de livre acesso), a um grupo de cidadãos mais vulneráveis do que aquele com o qual o Estado contrata a «prestação de serviços» para supressão de necessidades de mão de obra permanentes do sector público.
Aos profissionais forenses deve pesar a consciência quando entram num tribunal, pois parte de quem lá trabalha todos os dias integra este exército de precários. Gente que é explorada em nome do lucro privado feito em contratação com o Estado.
Aos encantados com as propostas de enriquecimento desta onda libertária designada «Iniciativa Liberal», eis o que defendem: o profundo mal dos muitos para benefício de uns poucos, a «riqueza» que assenta na famosa questão:
«E eu pergunto aos economistas-políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico.» Almeida Garrett
E é pelo inalienável direito do rico a tributar menos que se batem estes bravos.