Das Leituras no passado recente («O Acontecimento» de Annie Ernaux)
Parece de outro tempo (e é). Mas o passado é recente q.b. para ter sido nas nossas vidas que mulheres viveram esta tragédia dentro da tragédia que é abortar. A tragédia de só as mais abastadas se pouparem ao tremendo risco da clandestinidade das pobres, pagando com a saúde e por vezes a vida o que é um cuidado de saúde básico numa sociedade minimamente livre e igual.
O cativante relato de «O Acontecimento» expõe a profunda solidão da mulher refém de uma gestação indesejada entre homens incapazes de responsabilidade ou culpa, como se a gravidez não conhecesse co-autoria masculina. Demonstra que a gravidez é, frequentemente, uma sentença de pobreza lida às mulheres que escolhem (condicionadas, ou livremente) levá-la a seu termo, sem a interromperem.
E foi para se libertar da pobreza e poder ascender a uma classe acima da sua que esta jovem mulher co-narradora arriscou a vida, submetendo-se a procedimentos medievos e perigosos, porque a sociedade vivia melhor com o mal das muitas para que uns poucos reaças dormissem no seu sossego hipócrita (quantos deles apoiaram e custearam a IVG para as mulheres da família enquanto cuidavam de submeter as mulheres pobres a esta barbárie ostracizante?; quantas mulheres abertamente contra a IVG optaram, na sua intimidade, por interromper a gravidez do seu corpo ou das mulheres da sua família?).
«O Acontecimento» dá conta de uma das muitas formas de agonia das mulheres. Do que sofreram e sofrem enquanto grupo. Do quanto durante tantos séculos esteve normalizado e era pura violência e subjugação. Não nos surpreendamos então que muitas mulheres, com tanto de horrível tão próximo e ainda presente na sua história, sejam quem reclama visibilidade onde certas agendas as pretendem apagar em nome da inclusividade.
É que, mal começámos a notá-las e a dignificá-las com vagos mínimos, logo trataram de lhes terraplanar a identidade.
Também por isto, um relato contundente e honesto como este «O Acontecimento» é um testemunho importante do sofrimento no feminino, exclusivamente imposto pelos fortes sobre as fracas.