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Os Heterónimos da Peçonha

Os Heterónimos da Peçonha

31
Mar23

Das densidades compensadoras («Absalão, Absalão!» de William Faulkner)

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Os primeiros dois terços são densos, têm tudo aquilo de que se queixam os nhonhós que acham que o senhor Faulkner não lhes merece esforço leitor. O último terço, também porque dá sentido ao todo e fecha vários arcos narrativos até aí muito menos perceptíveis, exige bem menos. Mas todo o livro é Sul Profundo faulkneriano, narrando em portentosa frase longa a tragédia prenunciada, que avança como uma torrente: inelutável, turva, de ecos plúrimos (a várias vozes), e cíclica... como são as torrentes sazonais até que as alterações climáticas lhes acabem com a estirpe.

Fica a sugestão: go faulkner youselves.

27
Mar23

Das dessincronias leitoras («The Collected Poems, Vol. 1: 1909-1939» William Carlos Williams)

rltinha

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Chegar a esta poesia 20 anos antes ter-me-ia deslumbrado. A ingenuidade, o optimismo, o vagar tremendo de quem vê a amostra e a toma pelo todo que dispensa gestão de esforços (e de tempo), a generosidade impressionável, tudo isso se foi reduzindo com o volver dos dias e o aperto das suas possibilidades horárias.

Com tais qualidades recuperadas esta leitura teria sido bem distinta, dificilmente determinante de mais do que a pouca vontade de seguir para o segundo volume.

12
Mar23

Das torrentes de fel crítico («O Atlas» de William T Vollmann)

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Eu devia ter desconfiado quando comecei a ler/ver conteúdos sobre o Vollmann e este livro em particular, todas muito elogiosas, mas exclusivamente masculinas. (Às vezes esqueço-me de como a desconfiança pode ser sadia e propensa à auto-preservação.)

«O Atlas» de William T Volmann é a cornice mais misógina e lenocina (eu sei que há aqui um pleonasmo; deixem-me!) que li em toda a minha vida.

E sim, há muita coisa por aí que partilha estas características odiosas, é vasta a lista de obras generosas em cornice misógina, romantização/normalização da exploração e objectificação dos corpos das mulheres, desumanização das mulheres, diabolização da mulher toxicodependente/incumpridora de deveres parentais/afectivamente reservada ou indisponível/simplesmente desobediente à vontade do macho. 

Mas este agregado de trechos narrativos cornos eleva aquele leque aos píncaros de uma escrita forte e segura, densa de imagens e contextos plúrimos de uma deambulação planetária cornuda. «O Atlas» é um mapeamento de ódio sonso às mulheres que, se não enojar o leitor, então talvez este possa servir de matéria de estudo sociológico sobre a razão pela qual o predador das mulheres é o homem e nada na sociedade se muda para cessar a violência e opressão da qual as mulheres são e serão vítimas até nas sociedades que gostam de se pensar como «mais evoluídas».

Além de convocar o globo terrestre com focalizações em pontos escolhidos, cumprindo a forma de um palíndromo narrativo que é um tratado de cornice misógina e lenocínio, «O Atlas» também integra um asco de outro tipo: o do turista de guerra que sob as vestes do jornalismo vai sugar adrenalina e satisfação de pulsão sádica para depois relatar a barbárie enquanto adereço performativo de glutonia de atenção e sociopatia socialmente validada com a unção unânime. «Oh, a coragem de Beltrano! Que partiu da segurança do seu lar para, com valentia e dedicação à causa, comer torradas de abacate num bar de hotel, ao som de artilharia pesada sobre bairros de desgraçados sem nada para comer há semanas, e ainda encontra tempo para uns passeios voyeurs enquanto desafia a sorte sobre os quais envia textos cheios de si e pimenta no cu dos outros». 

Haja intelectuais, e pessoas melhores do que eu, para receberem como heróis estes bravos sugadores da miséria alheia, e também para apreciarem cornice literária sem consciência de género ou de classe.

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