Das recomendações outonais
Tempo de reclusão aconchegante é propício a escrita de teor diarista, que não raras vezes serve para ganhar perspectiva e tratar de assuntos que nos perturbam o sossego.
Façam como ela. A Gata Karénina sabe destas coisas.
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Tempo de reclusão aconchegante é propício a escrita de teor diarista, que não raras vezes serve para ganhar perspectiva e tratar de assuntos que nos perturbam o sossego.
Façam como ela. A Gata Karénina sabe destas coisas.
Pouco há de tão apelativo à empatia do leitor como uma boa escrita sobre a voragem do tempo. Proust sabia-o bem. McEwan sabe que não é Proust. Também sabe que vive num tempo distinto, ao qual atenta sem olvidar o que o antecedeu e moldou. E desta lucidez urgente veio um livro que demora a arrancar porque se toma em vagares analépticos despreocupados com optimização dos efeitos aditivos sobre as massas. Também por este respeito pelo leitor McEwan merece ser lido com entusiasmo.
«Lições» é uma vida inteira permeada de outras, parciais, também elas gozando de um detalhe raro e esforçado, raramente forçado. Convoca a história dos últimos 70 anos de modo não linear (é o leitor quem organiza a linha cronológica que começa sinuosa e depois se estende) segundo a vida de Roland Baines. E a criança Roland é indubitavelmente o pai do adulto Roland, que passa pela história da segunda metade do séc. XX e chega ao tempo da pandemia carimbado por todas as estações do tempo volvido, resultando do lote de presenças e ausências dos demais. Vítima atípica (por ser homem) de dois ataques que lhe são feitos por mulheres, Roland vive simulando-lhes resistência, numa negação quase inconfessa. Como vive, aliás, a generalidade dos atacados: resistindo apesar dos danos, reinventando-se nos destroços do que não os tratou como era esperado.
A virtude maior de «Lições» é que a sua ambição não ofende. Não só supera a expectativa leitora, como faz de modo inesperado, sem pejos em conduzir o mais emotivo dos momentos narrativos para uma imediata foz de desaire, como tão frequentemente faz a vida. Tudo isto enquanto tece uma personagem-tempo e história à moda de Stoner, mas sem o aconchego do microcosmos de uma academia longe do caos e miséria do pós-guerra, da paranóia da Guerra Fria, do flagelo Thatcher, da RDA e reunificação da Alemanha, da cavalgada neoliberal e seus «danos colaterais».
Aqui fica a sugestão musical para o fim-de-semana chuvoso.
Depois de ter lido «Uma Odisseia - Um pai, um filho e uma epopeia», um novo ensaio de Daniel Mendelsohn nas novidades editoriais nacionais era mesmo para adquirir sem demoras. Ainda por cima em capa dura em tom amarelo, juntando a boa estética ao literariamente apelativo.
Felizmente o fim-de-semana que agora começa terá uma hora extra para que avance nas leituras de não-ficção e possa encaixar este no futuro próximo da minha degustação leitora.
Pancrácio, um gatinho cuja sorte será elevada ou extremamente escassa, dependendo de quem o observe.
Um gato de rua não será um gato com sorte enquanto se mantiver como gato de rua.
Um gato de rua, coberto de ferimentos e FIV+, é um gato com muito azar.
Com despesas por minha conta e alguns danos colaterais, foi capturado, esterilizado e tratado nos seus ferimentos. Como se revelou um monstro em espaço confinado, regressou à rua até mesmo antes de estar totalmente recuperado. Felizmente recuperou q.b. e a esterilização surtiu o efeito comportamental da minoração de lutas, que eram a fonte maior dos ferimentos.
A avidez pelo patê matinal fez dele um gato de presença diária no lugar em que o alimento, suportando carícias apenas e só enquanto come, mas que são um passo importante para, em caso de doença superveniente, o poder tratar/capturar sem riscos maiores.
O Pancrácio precisa de um lar. Precisa de uma casa com logradouro, porque dentro de portas ele sente pânico. Com alimento e carinho está a tempo de se tornar num excelente gato.
Não acredito em milagres maiores do que os da possibilidade que criam as pessoas com boa vontade. Elas também existem, ainda que integrem uma população muito reduzida. Só preciso que uma pessoa com boa vontade o venha buscar.
Até lá cumprirei o ritual diário de o alimentar a horas certas e o coagir a ser acarinhado.
«We're spitting off the edge of the world (out in the night)
Never had no chance (nowhere to hide)
Spitting off the edge of the world (out comes the sun)
Never had no chance (nowhere to run)»
Num mundo medieval não concretamente identificado, mas em que a condição das mulheres, dos homens, e do clero em tudo se assemelha aos reinos medievais, um casamento ajustado pelas respectivas famílias unirá a Bianca a Giovanni.
Antes e depois dele, porém, Bianca vestirá uma mágica pele de homem que há gerações é passada e usada entre as mulheres da sua família, dentro da qual estas puderam circular pelo mundo enquanto homens.
A pele é o mecanismo pelo qual flui toda uma experiência de privilégio, liberdade, e possibilidade que para as mulheres é tão vedada que não a imaginariam. Encontra eco em páginas fluídas, de painel único, pelo qual deambulam as personagens, em pictorizações entre o fabulesco e o imediatamente gracioso. Sem moralismos excessivos, este é um enredo de desmontagem de estereótipos, de indagação sobre «a tradição», de soluções práticas para problemas complexos, mas com a virtude de não pregar coisa alguma.