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Os Heterónimos da Peçonha

Os Heterónimos da Peçonha

01
Ago23

Das leituras no passado recente («A Informação» de Martin Amis)

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Tendo por tema a inveja/competitividade entre dois «amigos» escritores e como factóide literário a zanga entre o Martin Amis e o Julian Barnes, foi direitinho para a lista de desejos. Infelizmente a Quetzal não o levou para as últimas feiras do livro, vendo-me eu obrigada a adquiri-lo com uns míseros 30% de desconto. Ironicamente a Wook vendeu-o com os desejáveis 50% de desconto na semana em que o comecei a ler.
Tudo isto, à semelhança do livro do Amis, é um conto moral. O cosmos conspirou com sinais demonstrativos (ex poste) da má ideia que foi adquirir esta tradução pejada de calinadas, feita por um tradutor que desconhece o significado do verbo presumir, assim o demonstrando em pelo menos 16 (dezasseis) ocasiões distintas, nas quais traduz MAL o verbo «to assume» para o verbo «assumir». Também renomeia a reincidência penal como recidiva, e chega mesmo a traduzir «paper cup» para «caneca de papel» (certamente porque o recipiente descartável teria uma asinha de papel). Nem sob a boa fé de na realidade o tradutor estar a criar no leitor a revolta e o desapontamento sentidos por Richard Tull num trabalho de transposição linguística meta-artístico isto parece menos mau.
Quanto ao livro: é lamentável que o haja lido já na fase em que coisas adolescentes como o realismo mágico, os «nothingburgers» bué simbólicos ou a sociopatia armada aos cágados me digam já tão pouco. Sendo o livro opulento neste último tipo de afectações «teen» muito famosas entre homens com síndrome «sou o maior da minha rua, mas, tipo, por ser bué inteligente», tê-lo-ia adorado há um par de décadas. Por isso limitei-me a rir bastante e a satisfazer a curiosidade literária sobre o livro gerador de um «desamigamento» literário de larga fama, certa de que uma tradução alienante pela frequência dos seus erros dificilmente terá feito justiça à qualidade da escrita de Amis.

17
Jul23

Das leituras no passado recente («Confiança» de Hernán Díaz)

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Começando por um livro dentro do livro, Diáz adianta o tema, o tempo e o lugar (dinheiro/finança, EUA, dos loucos anos 20 ao pós-Grande Depressão). Segue-se-lhe uma estranha autobiografia inacabada, uma memória «bildungsroman» pela improvável ex-secretária do autor da autobiografia, culminando no diário da mulher do autobiografado.

Com estas quatro partes distintas Díaz confirma o que diz de si próprio - que há muito se esforça, trabalha e escreve (e que lufada de ar fresco é ler entrevistas em que o autor se apresenta como ser humano dedicado ao processo e não um iluminado das musas da escrita que recebe em si um dom divino) - e tem prestações de qualidade em todos estes estilos e vozes narrativas.


Depois há o fio que a tudo isto urde, dando às personagens densidade e relevância consoante cada perspectiva e contributo «factual» transportado para o conhecimento do leitor, num omnipresente ensaio subliminar sobre a ficção «dinheiro», indissociável dos seus cultores maiores que são os homens da finança, com um antecipável, mas nem por isso menos rico twist final. E é por estas duas últimas partes que este romance se revela à altura dos elogios, pela capacidade para rever a história pela perspectiva dos vencidos usando as fórmulas, os cenários, e a própria literatura dos vencedores.

13
Jul23

Das leituras no passado recente («Fundação» de Isaac Asimov)

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Um clássico incontornável da ficção científica, amplo em enredo e personagens cativantes (ainda que as mais fascinantes sejam um decalque variado de um modelo-base), que relata uma história de império galáctico em declínio e os deliciosos meandros sócio-político-económicos de um atalho de recuperação civilizacional traçado pela ficcionada disciplina da psico-história.

Exactamente o que parece: um portento imaginativo competentemente narrado, capaz de criar no leitor uma vastidão de mundos. Só não chega tão longe que permita ver mulheres como seres humanos completos e muito menos em lugares de poder ou protagonismo. Que este futuro é o de há 80 anos, mas agora parece que já é tudo leite e mel e até o termo vagina deve ser evitado, não vá alguém destituído de uma ofender-se na sua sensibilidade com a nomeação de um órgão que garantiu às suas portadora um apagamento tão absoluto que até operava nas capacidades imaginativas mais fulgurantes.

13
Jun23

Das leituras no passado recente («Os Livros da Minha Vida» de Maria Filomena Mónica)

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Ler textos pessoais, sobretudo os que relatam percursos de vida das personalidades públicas eruditas, requer distanciamento emocional e nenhuma consciência de classe. Só assim se aligeira a irritação gerada pela empáfia do privilégio nas suas ramagens plúrimas.
Enquanto ao leitor vai sendo enunciada uma vasta lista de títulos (cuja edição é demasiado possidónia para traduzir até nas frequentes vezes em que existe tradução portuguesa das obras) recebe também o mesmo leitor o testemunho de uma autora que tem a Inglaterra como A nação superior, a qual lhe deu o que de melhor que existe em termos culturais, não se poupando à exaltação da liberdade que a liberachada tanto gaba (sem considerar as demais condições para existência da «liberdade a sério»), lamentando os malefícios do politicamente correcto, sublinhando que a Amazon muito fez por todos nós («e o seu contributo é enorme» [sic]) enquanto se afirma «de esquerda».
Num tempo de imposição (pelos próprios a terceiros) pelo que se afirma e não pelo que se faz/se é, aceitemos como «de esquerda» quem, com fascínio confesso por uma monarquia (no século XXI) entregue à selvajaria das políticas neocoisas, se diz de esquerda.
E bata-se punho a traduzir dezenas de títulos que nem autora nem revisor se dignaram a traduzir.

28
Abr23

Das Leituras no passado recente («O Acontecimento» de Annie Ernaux)

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Parece de outro tempo (e é). Mas o passado é recente q.b. para ter sido nas nossas vidas que mulheres viveram esta tragédia dentro da tragédia que é abortar. A tragédia de só as mais abastadas se pouparem ao tremendo risco da clandestinidade das pobres, pagando com a saúde e por vezes a vida o que é um cuidado de saúde básico numa sociedade minimamente livre e igual.
O cativante relato de «O Acontecimento» expõe a profunda solidão da mulher refém de uma gestação indesejada entre homens incapazes de responsabilidade ou culpa, como se a gravidez não conhecesse co-autoria masculina. Demonstra que a gravidez é, frequentemente, uma sentença de pobreza lida às mulheres que escolhem (condicionadas, ou livremente) levá-la a seu termo, sem a interromperem.
E foi para se libertar da pobreza e poder ascender a uma classe acima da sua que esta jovem mulher co-narradora arriscou a vida, submetendo-se a procedimentos medievos e perigosos, porque a sociedade vivia melhor com o mal das muitas para que uns poucos reaças dormissem no seu sossego hipócrita (quantos deles apoiaram e custearam a IVG para as mulheres da família enquanto cuidavam de submeter as mulheres pobres a esta barbárie ostracizante?; quantas mulheres abertamente contra a IVG optaram, na sua intimidade, por interromper a gravidez do seu corpo ou das mulheres da sua família?).
«O Acontecimento» dá conta de uma das muitas formas de agonia das mulheres. Do que sofreram e sofrem enquanto grupo. Do quanto durante tantos séculos esteve normalizado e era pura violência e subjugação. Não nos surpreendamos então que muitas mulheres, com tanto de horrível tão próximo e ainda presente na sua história, sejam quem reclama visibilidade onde certas agendas as pretendem apagar em nome da inclusividade.
É que, mal começámos a notá-las e a dignificá-las com vagos mínimos, logo trataram de lhes terraplanar a identidade.
Também por isto, um relato contundente e honesto como este «O Acontecimento» é um testemunho importante do sofrimento no feminino, exclusivamente imposto pelos fortes sobre as fracas.

11
Abr23

Das adições ao acervo livresco doméstico (chegadas do passado recente)

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Doravante conto reduzir as tentações livrescas momentâneas, fazendo por orientar as aquisições para objectivos leitores de mais longo alcance.

Mas, como a minha mutabilidade decisória é ampla no que respeita a leituras, ainda estou para ver no que darão tais intentos...

10
Abr23

Das leituras no passado recente («Os Ignorantes» de Étienne Davodeau)

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Dois amigos têm carreiras distintas. Um é produtor de vinho, e o outro de arte sequencial (especialmente argumentos). Este último achou que tinha aqui óptimo material para uma novela gráfica, e por isso abundam os paralelismos forçados entre os dois ofícios, lembrando aquelas entrevistas em que os actores que dão voz a um animal real ou imaginário falam de como tiveram que explorar o «esquilo-das-pampas/crocodilo floclórico/dragão do Alto Minho» que havia algures no mapeamento da sua alma.

Talvez não suportar, sequer, o cheiro do vinho haja minorado a minha boa vontade leitora, mas ainda pior do que isso é o asco que tenho a cenas de «A conhece B, cuja fama aproveita para dar visibilidade ao que faz». E também nisso abunda esta obra, sempre muito humilde e autêntica, só que sem abdicar destes «cameos» que por acaso têm o condão de amaciar o público-alvo.

Uma leitura tão boa como um copo de vinho.

04
Abr23

Das leituras no passado recente («X-Men - Dias de um Futuro Esquecido»)

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O problema de se chegar a obras seminais depois de décadas a contactar com as narrativas emergentes daquela influência é que não se leva a frescura virginal necessária para se sentir o assombro adequado.
A piorar esta incapacidade de fruição estão ainda as issues iniciais, inseridas para alcançar a paginação média exigida pelos padrões da colecção em que se inseriu este título.
Por este motivo assinalou-se o preenchimento do quadradinho no formulário imaginário dos essenciais dos comics, mas o que se reteve foi uma pouco estimulante leitura de comics de uma era em que a hiper e prolixa explicação ainda era norma, embora já sem o encanto da hilaridade inicial, fazendo uso de mecanismos enfadonhos pela sua previsibilidade, sem esquecer a afronta estética da coloração «daltónico às escuras» típica dos comics dos 80’s.

31
Mar23

Das densidades compensadoras («Absalão, Absalão!» de William Faulkner)

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Os primeiros dois terços são densos, têm tudo aquilo de que se queixam os nhonhós que acham que o senhor Faulkner não lhes merece esforço leitor. O último terço, também porque dá sentido ao todo e fecha vários arcos narrativos até aí muito menos perceptíveis, exige bem menos. Mas todo o livro é Sul Profundo faulkneriano, narrando em portentosa frase longa a tragédia prenunciada, que avança como uma torrente: inelutável, turva, de ecos plúrimos (a várias vozes), e cíclica... como são as torrentes sazonais até que as alterações climáticas lhes acabem com a estirpe.

Fica a sugestão: go faulkner youselves.

27
Mar23

Das dessincronias leitoras («The Collected Poems, Vol. 1: 1909-1939» William Carlos Williams)

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Chegar a esta poesia 20 anos antes ter-me-ia deslumbrado. A ingenuidade, o optimismo, o vagar tremendo de quem vê a amostra e a toma pelo todo que dispensa gestão de esforços (e de tempo), a generosidade impressionável, tudo isso se foi reduzindo com o volver dos dias e o aperto das suas possibilidades horárias.

Com tais qualidades recuperadas esta leitura teria sido bem distinta, dificilmente determinante de mais do que a pouca vontade de seguir para o segundo volume.

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